22 de ago. de 2011

2.3. Biopolítica: formação do Estado, economia política, liberalismo e neoliberalismo.


Foucault, a fim de fortalecer seus estudos sobre as relações de poder na sociedade moderna, sentiu a necessidade de ingressar no campo da história contemporânea. No curso dado no Collège de France “O Nascimento da Biopolítica” (1978 – 1979) faz essa incursão e sugere que o que deveria ser estudado é a maneira como os problemas específicos da vida e da população foram colocadas no interior de uma tecnologia de governo, o que ele chama de Biopolítica. Sem querer dar conta de toda a complexidade dessa  questão, penso ser importante para esta Dissertação algumas considerações sintéticas sobre o tema.

Até o SEC XVI não existe uma racionalidade e uma arte de governar, nem sequer para o Estado enquanto entidade autônoma. Neste momento começavam a ser esboçadas as primeiras teorias sobre a formação do Estado. O Príncipe é o representante de Deus na terra e mantém relação com seus súditos como pai e pastor, ainda não há uma relação jurídica bem definida e sua principal função é proteger, reforçar e manter seu principado dos perigos internos e externos. O Estado somente começa a se desenvolver entre os séculos XVI e XVIII, a partir de uma Razão de Estado, onde a ordem divina não mais é o foco, mas sim o cálculo, o planejamento estratégico, o conhecimento, a estatística e o controle da população.
A formação do Estado, segundo Foucault (2008), se inicia a partir de uma arte de governar pautada numa razão de Estado, uma nova racionalidade de governo que tem no fortalecimento do Estado seu objeto, fortalecimento que se dá na medida em que ele pode enriquecer e acumular, ter o controle da população, estar em concorrência com as potências estrangeiras e organizar um aparato político, militar e diplomático. Entretanto, essa razão de Estado não pode ser absoluta, pelo contrário, precisa ter autolimitações em suas relações externas e internas. Assim o Direito e as instituições judiciais são o princípio externo e limitador desse Estado que vem se formando.
Também não se poderia admitir, diz Foucault, uma razão de Estado que permitisse o abuso de poder na ordem econômica e  na ordem da vida política, e muito menos violar direitos fundamentais, pois nesses termos a razão de Estado perde seus próprios direitos. Nessa formação o Estado nada mais é do que o recorte móvel de uma perpétua estatização, ou transações incessantes que modificam e fazem deslizar as fontes de financiamento, as modalidades de investimento, os centros de decisão, nada mais é que o efeito móvel de um regime de governamentalidades múltiplas.
Outro elemento fundamental para a razão de Estado é o mercado, o que as tendências liberais chamam de lugar de jurisdição, o lugar da verdade onde a razão de Estado deve buscar sua essência e se alimentar. E justo neste ponto encontra seu maior problema: como inserir a economia na política no campo das relações de poder, de maneira que uma economia política possa passar a gerir adequadamente a população, os bens, as riquezas, a família e o próprio Estado.
Na razão governamental crítica, segundo Foucault, o problema não é mais uma questão de se delimitar pelo Direito a legitimidade de manter sua ação de governo (como ainda era o caso do século XVI e XVII), o problema vai girar em torno de como não governar demais. A racionalidade da prática governamental nesta perspectiva é dada pelo esforço em delimitar o que seria excessivo para o governo, e para isso é necessário uma Economia Política, um saber de governo, um regime de verdade que paute as práticas governamentais para que não governassem demais, e, além disso, assegure mecanismos de autolimitação das práticas desse próprio governo: uma Política Econômica.
A expressão economia política surge entre 1750 e 1820, com diferentes significados: 1) análise estrita da produção e circulação das riquezas; 2) método de governo capaz de assegurar a prosperidade de uma nação; 3) espécie de reflexão geral sobre a organização, a distribuição e a limitação dos poderes numa sociedade.
O entendimento geral sobre economia política é que a análise da produção e da circulação da riqueza assegura a prosperidade de uma nação. Mas é preciso destacar pelo menos uma de suas principais funções: autolimitar as práticas de governo e da sociedade como um todo. Não pode mais se pautar por direitos anteriores (positivismo), mas por práticas de governamentalidades, e isso significa dizer que o Direito passa a ser o campo de arbitragem da prática da economia política, e não mais seu limitador externo. Considerando essa natureza, a prática governamental, passa a se colocar em termos de sucesso e fracasso, e não mais como legitimo ou ilegítimo. Segundo Foucault, inauguramos uma era regida pelo princípio do máximo e do mínimo na arte de governar.
Não se deve tocar no que está quieto, ou não se deve governar demais, são ditos fundantes da arte de governar liberal (como os governantes devem governar) na formação do Estado moderno. Foucault focou seus estudos no domínio da prática do governo e seus diferentes objetivos e regras gerais[1], a fim de entender como se pode governar da melhor maneira possível. E governar da melhor maneira possível é racionalizar a prática governamental para o exercício da soberania da política econômica. O liberalismo não deve ser entendido como uma ideologia, uma idéia, mas uma prática orientada por planejamentos estratégicos, metas e objetivos bem definidos, com alta capacidade de reflexão crítica e contínua sobre sua própria prática e sobre os resultados  alcançados com seus objetivos e metas.
O Liberalismo está pautado na perspectiva da formação do valor e da circulação das riquezas, articulando-se de maneira que sempre possa encontrar uma fórmula ou um esquema para que a prática econômica dos indivíduos escape da hegemonia do Estado.  O Liberalismo, segundo Foucault, possui dois aspectos principais:
1 – O mercado é o  mecanismo das trocas e lugar de veridição da relação  valor/preço.
2 – O poder público e as medidas das práticas governamentais são dados pelo princípio da utilidade das intervenções.
O filósofo segue afirmando que o liberalismo começa e se destacar e a se desenvolver a partir do SEC XVIII, apoiando-se numa razão governamental, não mais como a razão ilimitada da época da fundação dos Estados modernos, mas como uma razão de Estado que organiza e manipula interesses diversos e complexos, e que  regula a própria medida da intervenção necessária nas suas práticas governamentais para de maneira alguma atrapalhar as leis do mercado. Pelo contrário, o Estado precisa constantemente investir na formação de novos mercados regionais, nacionais e internacionais, perseguindo incessantemente o progresso econômico ilimitado.
A palavra liberalismo, como diz Foucault, é uma prática que não se contenta em respeitar liberdades, liberalismo é sinônimo de consumismo de liberdade, liberdade do mercado, liberdade do vendedor e comprador, exercício do direito de propriedade, liberdade de discussão. Essa busca de liberdade, entretanto não significa que você e eu sejamos livres, mas que será produzido o necessário para que você e eu tenhamos a liberdade de sermos livres[2]. O liberalismo não é o que aceita a liberdade, mas é antes aquele que a produz, aquele que faz o cálculo do custo dessa produção de liberdade que, por conseguinte: é a segurança. Então, liberdade e segurança são elementos fundamentais na formação da sociedade moderna e componentes indissociáveis na arte de governar liberal[3].

O deslocamento do liberalismo para o neoliberalismo na formação do Estado moderno começa a partir da crítica que surge mais recentemente na nossa história, crítica feita em relação ao intervencionismo do Estado, quer com políticas como o socialismo, como o Estado de Bem Estar Social ou como o New Deal americano do pós-guerra. Nessa perspectiva houve diversos teóricos descrevendo esse processo, mas comungavam num aspecto: fazer a crítica tanto à direita quanto à esquerda sobre o excesso de estadismo, ou seja, contra o crescimento exagerado do Estado e de sua Burocracia.
Seguindo os estudos de Foucault, o programa Neoliberal de nossa época se apresenta principalmente a partir de duas ancoragens críticas, a alemã e a americana:
 1 – República de Weimar[4]: a crise de 1929; o desenvolvimento do nazismo e a reconstrução do pós-guerra.
 2 – A política do New Deal[5]; as críticas à política de Rossevelt e as políticas intervencionistas dos governos democratas.
O problema colocado então por essas vertentes não estava entre socialismo e capitalismo, mas qualquer forma de intervenção econômica por conta do Estado.
Para o Neoliberalismo não há espaço para nenhum intervencionismo econômico, quer nos Estados socialistas quer nos Estados capitalistas. O seu problema era como construir um Estado forte a partir do mercado. As respostas, segundo Foucault, vieram com práticas de investimentos financeiros no fortalecimento do mercado como estratégia para a construção de um Estado legítimo e forte, assim, as práticas de governamentalidade começam a acompanhar e fortalecer a economia de mercado, baseada na concorrência e no livre mercado. 
O papel dessa razão de Estado neoliberal não é mais vigiar o mercado, nos moldes do liberalismo, nem garantir a livre formação dos preços ou a equidade das trocas, mas estimular a concorrência e vigiar o Estado. Ao invés de uma economia estatal (projeto liberal), a liberdade de mercado. O neoliberalismo de hoje não é um ressurgimento de velhas formas de economia liberal; o que está em jogo, quer na forma alemã, quer na forma americana, não é deixar a economia livre e sim saber até onde se poderão estender os poderes de informação política e de utilidade social na economia de mercado.
Os deslocamentos mais visíveis dessas práticas, segundo Foucault, se percebem na mudança que acontece nas relações das trocas livres entre parceiros (liberalismo), para a concorrência da economia de mercado (neoliberalismo). O objetivo neoliberal encontra sua medida na informação política e na utilidade social. A importante distinção que Foucault coloca entre neoliberalismo e liberalismo, é que no primeiro é preciso governar para o mercado ao invés de governar por causa do mercado, como no liberalismo. 
Por fim cabe ressaltar a perspectiva da política social neoliberal que em linhas gerais é uma política de contrapeso a processos econômicos que levam a desigualdades e de certo modo a efeitos destruidores da sociedade. Foucault salienta também que a política social é a socialização de certos bens de consumo, bens entendidos como uma política de recompensa ativa e generosa aos “maus”, aos que não souberam concorrer numa economia da livre iniciativa.
Na política econômica neoliberal é normal que pessoas trabalhem e outras não, em termos gerais, a fórmula é: nada de igualdade. Então será necessário tirar um pouquinho dos grandes rendimentos, aquilo que seria parte do sobre consumo, e transferir essa pequena parte ao subconsumo necessário da população. A política social não é de forma alguma a socialização do consumo e da renda, mas se trata simplesmente de assegurar não a manutenção de um poder aquisitivo, mas de um mínimo vital para assegurar a própria existência.
O que a economia política tem que fazer, em termos de política social, é criar as condições de se ter rendimentos suficientes para que, a título individual, possa se garantir por si mesmo contra os riscos de “viver perigosamente”. Trata-se de uma individualização da política social em que cada indivíduo pode encontrar seu espaço econômico, dentro do qual pode assumir e enfrentar os riscos do estar em sociedade.
Então pode se concluir que Biopolítica é a ferramenta tecnológica que tem o foco na análise da população, na produção e na circulação da riqueza como princípio da prosperidade de uma nação. A questão Biopolítica é mais a governamentalidade do social do que a justificação da ação do Estado. Nessa perspectiva, a sociedade civil transforma-se num conceito transacional, um código móvel no jogo entre governo e governados, um campo de ação de governamentalidade que opera a partir das divergências entre economia e sociedade, na construção de uma política econômica de controle da população que garanta a existência e o funcionamento de um mercado livre.


[1]     Ao invés de universais como sociedade, sujeito e ideologia.
[2]    Em termos de mercado livre, isso corresponderia a dizer que eu estou livre para escolher entre a marca A, B ou  C, e essa é minha liberdade.
[3]    Segundo Foucault (2008): O lema do Liberalismo é viver perigosamente.
[4]     A República de Weimar foi instaurada na Alemanha logo após a Primeira Guerra Mundial, tendo como sistema de governo o modelo parlamentarista democrático. As circunstâncias em que foi criada a República de Weimar foram muito especiais. Prestes a perder a Primeira Guerra Mundial, a liderança militar alemã, altamente autocrática e conservadora, atirou o poder para as mãos dos democratas, em particular o SPD, Partido Social-Democrata, que acabou por ter de negociar a paz (ou seja, a derrota na Guerra). Face  a essa situação política, que alguns compararam a um presente envenenado à democracia, acabou por lançar os fundamentos que permitiram mais tarde a Adolf  Hitler posicionar-se como o arauto de um regresso ao passado imperial e antidemocrático da Alemanha e implantar o nazismo (Slides de Aula de Paulo Eduardo Grischke, Disciplina Leitura Dirigida, Professora Maria Manoela FAE/UFPel – 2009-01, apresentando aula de 31 de janeiro de 1979 sobre o Nascimento da Biopolítica).
[5]     O New Deal (cuja tradução literal em português seria "novo acordo" ou "novo trato") foi o nome dado à série de programas implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo do Presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia norte-americana e assistir aos prejudicados pela Grande Depressão. Ações do novo trato/acordo: controle sobre bancos e instituições financeiras; construção de obras de infra-estrutura para a geração de empregos e aumento do mercado consumidor; concessão de subsídios e crédito agrícola a pequenos produtores familiares; criação de Previdência Social, que estipulou um salário mínimo, além de garantias a idosos, desempregados e inválidos; controle da corrupção no governo; incentivo à criação de sindicatos para aumentar o poder de negociação dos trabalhadores e facilitar a defesa dos novos direitos instituídos (idem).