22 de ago. de 2011

4.1. Histórias, Práticas e saberes


O loteamento Dunas se constituiu em 1988, mesmo ano em que foi promulgada a atual Constituição da República Federativa do Brasil e foi formalizada a redemocratização do país. O cenário político da cidade de Pelotas contava no ano de 1988, pela primeira vez, com as legendas criadas após a reforma partidária de 1979, quais sejam: PMDB, PDS, PTB, PDT e PT. Esses partidos disputavam, de forma inédita, um pleito exclusivamente municipal, consagrando-se como o grande momento na fase de redemocratização do Brasil.
Tudo indicava que a disputa estaria concentrada no PMDB e PDS, não só pela importância das legendas, como também pelos nomes que foram lançados. O PMDB escolheu o ex-prefeito Irajá Andara Rodrigues (Gestão 1977-1982), que havia derrotado a Arena em 1976, e fizera o seu sucessor em 1982. O PDS conseguiu unir a direita local, após ter sofrido as cisões que deram origem ao PFL e ao PL, e investiu em um quadro emergente, o então vereador Fetter Júnior, primeiro suplente de Deputado Constituinte em 1986 e representante de importante família política da cidade e região.
Os demais candidatos eram de partidos menos destacados. O PT lançou o vereador Flávio Coswig, que havia migrado do PCB, o PSDB lançou o advogado José Luis Marasco Cavalheiro Leite e o PDT apresentou o médico José Anselmo Rodrigues, que não possuía carreira política prévia. Tido como menos provável, o candidato Anselmo, do PDT, venceu a eleição por grande margem de votos. O PDS ficou com o segundo lugar e o PMDB sofreu mais intensamente o peso do crescimento de uma candidatura de oposição à esquerda em âmbito local, ficando em terceiro lugar (BARRETO, CHINI, 2004). A legenda da esquerda que dividiu os votos historicamente endereçados ao PMDB foi o PT.
Nesse contexto político teve início a constituição do Loteamento Dunas, sob o “comando” de Anselmo Rodrigues e do PDT. Inicialmente o Dunas foi formado por uma população de pessoas oriundas do interior da cidade de Pelotas, o que marca até hoje sua característica bastante rural, mas também por pessoas do entorno do Loteamento, como o Corredor do Obelisco, Bom Jesus, Jardim Europa e imediações, bem como do centro da cidade e de outros bairros. Essa foi uma constituição bastante heterogênea no que diz respeito às territorialidades das pessoas que constituíram essa comunidade. Entretanto, pode-se entender que constituiu-se de forma muito homogênea no que diz respeito às condições econômicas, pois eram famílias de baixa renda que estavam em busca de melhores condições de habitação e moradia com baixo ou nenhum custo.
No início de sua formação, por questões políticas e operacionais, o Loteamento ficou dividido em duas partes. A primeira foi ocupada ordenadamente e em congruência com o poder público municipal, estendendo-se da Rua Um até a Rua Nove. Nesse território foram disponibilizados lotes organizados e com alguma infraestrutura. A segunda parte vai da Rua 10 até a Rua 29. Trata-se de um local marcado pela ocupação desordenada e sem as mínimas condições de ambiência urbana. Ainda hoje, mesmo com os avanços do Dunas no seu desenvolvimento como um todo, é fácil perceber a precariedade desse espaço, em especial pela falta de equipamentos públicos, privados e de estruturas de ambiência urbana, pois as mesmas se concentram principalmente até a Rua Nove.
Os moradores e moradoras do Dunas, em função da ineficácia das ações políticas, pela ausência de estrutura de ambiência urbana e pela sua condição de baixa renda, expressavam um sentimento de desfavorecimento em relação ao centro da cidade e até mesmo em relação ao Bairro Areal, região administrativa de Pelotas na qual está situado. Esse fato foi potencializado com a invenção de que o Loteamento era um lugar violento, visão distorcida da realidade daquele tempo – espaço. Essa visão, que vinculava ferocidade ao Loteamento, foi funcional à necessidade política da gestão municipal para justificar grandes investimentos realizados naquele território desde sua constituição, e não em outros lugares da cidade com a mesma característica sócio-cultural e econômica.
Podem–se citar alguns exemplos dos investimentos realizados nesse território e que eram questionados por outras localidades da cidade como a constituição de duas escolas (uma de Ensino Fundamental e outra de Educação Infantil), uma Unidade Básica de Saúde, o prédio da Associação de Moradores e mais tarde os grandes investimentos do PRORENDA Urbano, equipamentos públicos que territórios do entorno do Dunas e de outras localidades de Pelotas com muito mais tempo de constituição ainda hoje não conquistaram.
As relações de poder na sua gênese foram pautadas entre moradores e moradoras por reivindicações de direitos de moradia, numa relação direta de forças com o poder público municipal, relações que geraram o tempo todo mecanismos dispersos que atuaram e produziram efeitos de poder no universo micro do cotidiano do Loteamento Dunas, como por exemplo, a conquista de diversos equipamentos públicos e estruturas de ambiência urbana. Entre elas destaco a marcação de ruas, o transporte coletivo e o fornecimento de água e luz, entre outras. Essas conquistas aconteceram em pouco tempo de existência desse território.
As relações de poder no período que compreendeu os anos de 1988 até 1996[1] não são fáceis de serem localizadas em uma determinada instância ou materialmente percebidas, mas produziram uma microfísica cotidiana específica daquele tempo e espaço. A análise desse período aponta que as relações entre poder público e moradores foram as relações mais significativas no jogo de poder que constituíram aquele tempo e aquele espaço.
Pode-se afirmar que naquela microfísica o mais visível efeito de poder local no loteamento foi a constituição da Associação de Moradores, instituição que assumiu naquele período os jogos de poder e colocou as práticas e saberes das pessoas/comunidade a partir dos seus interesses, necessidades e exigências para aquele tempo e espaço, efeito direto das relações de poder entre público e moradores, tendo nas lutas por condições dignas de habitação e ambiência urbana seu combustível.
A partir de 1996, com a implementação do PRORENDA Urbano, surgiu uma alteração importante nas relações de poder no que diz respeito ao associativismo de moradores em busca dos direitos de habitação e moradia. Essa novidade surgiu concomitantemente com a constituição do CDD, que embora tenha sido uma das maiores ações da Associação de Moradores (e gestado dentro dela mesma no período compreendido entre 1996 e 1997) foi também o início de uma prática que determinava outro mecanismo de poder que visava não somente ao associativismo em busca de direitos de moradia e habitação, mas a um mecanismo que operava as relações de poder em várias esferas da vida no Loteamento. Essas práticas podem ser identificadas como sendo relativas ao terceiro setor, tendo em vista a discussão apresentada no capítulo dois, desenvolvidas a partir do CDD, instituição laica, não governamental e sem fins econômicos. Esse Comitê teve como meta fomentar a auto-organização e a autogestão local para o desenvolvimento social e econômico da comunidade.
Esse processo efetivamente desmobilizou o associativismo dos moradores, uma vez que o centro da articulação e da reunião dos mesmos deixou de ser a Associação de Moradores e passou a ser cada vez mais o CDD. Todas as pessoas que compunham a diretoria da associação passaram a ser também os gestores do CDD. Já os recursos financeiros e a tomada de decisões sobre os rumos do Dunas passaram a ser tomados por dentro do CDD. Outro fator que mostra esse deslocamento é o fortalecimento da perspectiva de uma nova racionalidade para as relações de poder na sociedade e, no caso do Loteamento Dunas, o terceiro setor.
Essa nova perspectiva, decorrente de uma nova prática social e política, começou a pautar a auto-organização e a autogestão como elementos para o desenvolvimento local, tanto do ponto de vista social como econômico. Essa nova racionalidade substituiu as reivindicações pontuais de moradia que deram origem à formação do associativismo de moradores. Globalmente o terceiro setor cria um novo campo de atuação para as relações de poder na sociedade. As pessoas/comunidade precisam assumir mais “conscientemente” uma posição ativa e dar conta dos seus problemas de desenvolvimento local.
Essa transição decorrente do PRORENDA Urbano desarticulou a Associação de Moradores na sua concepção e prática. Seus dirigentes tornaram-se gestores e gestoras do CDD e assumiram o papel representativo no desenvolvimento local e nas relações de poder do Loteamento Dunas com a cidade e com o mundo. A estruturação das relações de poder a partir do PRORENDA Urbano (1996) começou a produzir outros efeitos, profundas reflexões e mudanças naquela microfísica, tanto no que diz respeito à sua representatividade institucional, como à sua prática e aos seus saberes.
Essa experiência traz a reflexão e o entendimento de que muitos dos programas e projetos locais de desenvolvimento e de atendimento de demandas públicas, elaborados por técnicos de governos, são geralmente planejados em gabinetes “de cima para baixo” e estão distantes das realidades dos espaços, dos tempos e das necessidades das pessoas a quem querem atingir ou beneficiar. A maioria dos modelos conhecidos, baseados nas lógicas convencionais e dirigidos para comunidades urbanas carentes de recursos e conhecimentos, não alcançam o êxito esperado, pois raramente são entendidos pelas pessoas a quem pretendem contemplar, devido à “ignorância” ou à “pouca instrução” sobre o assunto, além da ausência de participação na tomada de decisões.
É preciso destacar que “ignorância” ou “pouca instrução” não estão relacionadas à escolaridade das pessoas, mas ao nível de participação e esclarecimento que elas têm sobre a temática e o método apresentados para desenvolver um determinado local. Por isso, os benefícios propostos chegam parcialmente ou não chegam às pessoas, devido à utilização de métodos em gestões tradicionais que se esforçam ao máximo para deixar as pessoas e suas comunidades fora da participação nos diagnósticos e planejamentos que determinam sua microfísica.
As comunidades de uma forma geral não conseguem se apropriar desses planejamentos para transformar suas realidades e para multiplicá-los a outras áreas do seu território ou de espaços vizinhos, pois não têm participação ativa nos processos de construção e execução. Essas práticas muitas vezes fazem com que as pessoas não percebam os jogos de poder nos quais estão efetivamente inseridos e como e onde podem intervir para garantir suas vontades nas relações de poder que determinam sua microfísica. É o que Foucault (1982) problematiza e chama de insurgência do saber dominado como necessidade para se avançar em micro revoluções, processadas a partir da problematização entre os saberes comuns e os saberes científicos.
O poder tem uma característica visível que é perpetuar-se no exercício dele mesmo, o que significa um jogo que procura assegurar e manter determinados interesses e grupos dentro do quadro social, tema que é bastante complexo e de difícil localização. Entretanto, pensar na insurgência dos saberes dominados poderia superar a ineficácia de projetos em que não há a participação das pessoas e de suas comunidades na elaboração e acompanhamento dos projetos que se desenvolvem no seu território. Os métodos tradicionais podem ser identificados como planos assistenciais e populistas que não estão preocupados com a solução das dificuldades das populações urbanas carentes de recursos e conhecimentos.
Essa moldura das relações de poder só pode ser modificada no momento que forem efetivamente ativados saberes ditos inferiores e desqualificados, e isso não quer dizer de forma alguma um saber comum ou um bom senso, mas uma episteme diferente. A crítica a essas práticas de “cima para baixo” deve partir de uma microfísica local da realidade, para que então se possam problematizar os sistemas globais e o que está colocado ou construído cultural ou historicamente como verdadeiro e absoluto nas relações de poder que determinam a sociedade.
O Projeto PRORENDA Urbano do Rio Grande do Sul teve como estratégia enfrentar os temas da participação e da autogestão, procurando superar a lógica de gestões tradicionais de “cima para baixo”. Foi um processo relativamente longo de interação entre lideranças comunitárias e técnicos do setor público. A proposta metodológica e a estrutura institucional criadas de fato foram um produto da parceria entre técnicos e comunidades, que logo após a fase piloto em Porto Alegre (1990-1996), realizou sua expansão para novos municípios do Estado do Rio Grande do Sul (1996-1999), entre eles Pelotas através do Loteamento Dunas. A multiplicação da metodologia que aconteceu nessa etapa necessitou de uma grande dedicação em assessoramento, não só aos técnicos municipais como também às lideranças comunitárias, dispersas em muitos novos pontos geográficos de aplicação da metodologia.
Planejar o desenvolvimento das zonas urbanas de baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e alta vulnerabilidade social é sempre uma tarefa urgente e necessária. Requer disponibilidade de tempo, paciência, tolerância com as diferenças e muita determinação. Quando esses planejamentos são caracterizados pela falta de participação e identidade com a realidade, com a falta de objetividade e incompreensão das pessoas a quem são dirigidos, caem logo no descrédito e na maioria das vezes na ineficácia. Especialmente as populações de baixa renda que moram em vilas e periferias, em situações de ausência de ambiência urbana, esperam mudanças efetivas no processo do planejamento e no relacionamento entre governantes e governados, e quando isso não acontece percebem rapidamente as deficiências no planejamento (THOMAZ, 1997).
Para ter êxito, e isso também é relativo, o desenvolvimento físico e social de vilas e periferias deve ser conduzido junto com os próprios moradores e moradoras das comunidades em que se pretende trabalhar. A experiência no Loteamento Dunas trabalhou nessa perspectiva, procurando superar planejamentos de "de cima para baixo", colocando como princípio articulador aos governantes o papel de facilitadores e de apoiadores e aos governados o papel de assumirem cada vez mais as responsabilidades e a iniciativa dos seus processos de desenvolvimento local. O PRORENDA Urbano desenvolveu instituições e práticas que pautaram temas importantes para se repensar essa prática “de cima para baixo” e as relações entre governo e governados.
O programa exercitou tal perspectiva desenvolvendo diagnósticos participativos que identificaram as necessidades e deficiências sentidas no Loteamento Dunas[2]. Para dar um exemplo, a escolha da principal obra ou equipamento social realizada pelo PRORENDA Urbano foi feita pelas pessoas do Dunas. Foi construída uma quadra de esporte com espaços no entorno para comércio e atividades comunitárias. Essa escolha se deu pela participação local na tomada de decisões sobre o seu desenvolvimento a partir da presença do olhar micro, que identificou na potência do futebol o esporte e lazer mais expressivo do loteamento, e na solidariedade ética das pessoas, a possibilidade do desenvolvimento econômico daquele território (THOMAZ, 1997).
Diversos métodos, técnicas e instrumentos foram testados e implementados no Loteamento Dunas e em outros lugares. O processo desenvolvido pela GTZ no Programa PRORENDA Urbano dentro do Acordo Bilateral Brasil – Alemanha constituiu novas relações de poder. As análises aqui desenvolvidas  mostram que efetivamente o programa se preocupou em superar a lógica tradicional dos planejamentos de “cima para baixo”. Ao mesmo tempo apontam que mesmo, preocupado em superar a lógica tradicional, muitas vezes teve na análise dos processos de implementação do programa os nós dos seus acertos e dos seus erros, isso porque nem sempre deu conta de acompanhar devidamente seu processo de implementação e nem sempre conseguiu dar atenção e assessoramento constante aos gestores públicos, aos gestores locais que constituíram o Comitê de Desenvolvimento Dunas e aos parceiros estratégicos.
Os efeitos mais visíveis nas relações de poder que se pode verificar no período foram o desenvolvimento de várias iniciativas econômicas que ocuparam os espaços no entorno do centro comunitário, bem como a organização de algumas cooperativas que se desenvolveram na incubadora de pequenas iniciativas de geração de trabalho e renda. Também cabe salientar outras iniciativas culturais e projetos sociais que foram desenvolvidos via fundo comunitário. Dentre Elas a Cooperativa de Materiais Sanitários Básicos, a Cooperativa de Vestuário - DUNASVEST, a Cooperativa de Alimentação Alternativa – COALA e diversos projetos sociais desenvolvidos pelo CDD, como a escolinha de futebol, o curso de capacitação em construção civil e a prática de capoeira, dentre outros (Relatório AMIZ, 2001).
Nesse contexto a pauta da participação e do empoderamento das pessoas/comunidade nos jogos de poder esteve presente na experiência analisada, entretanto não se pode cair na ingenuidade de acreditar que nas relações de poder entre governo e governados que operaram o PRORENDA Urbano foram prestadas todas as informações sobre as ações que seriam realizadas, que todos os espaços foram abertos para as articulações autônomas das pessoas/comunidade interessadas em contribuir com aquele processo, que todas as decisões foram tomadas com a população em forma de cogestão ou que sempre houve consenso. isso Falar em jogos de verdade é analisar o poder como relações de forças que circulam, que geram o tempo todo mecanismos dispersos que produzem efeitos muitas vezes não previstos ou simplesmente desdobramentos resistentes às metas e objetivos desejados. Falar em poder é falar sempre em disputa de interesses de diferentes grupos dentro do quadro social, e isso é um jogo sempre aberto e muito raramente há consenso geral.
Um dos efeitos mais significativos nas relações de poder do Loteamento foi a criação do Comitê de Desenvolvimento do Dunas, uma instituição que foi constituída na perspectiva de fazer com que mesmo numa situação de desvantagem econômica e de falta de estruturas de ambiência urbana as pessoas/comunidade do loteamento  pudessem entrar na disputa por seus direitos e condições dignas de vida através de suas vontades e necessidades, a partir de um mecanismos de poder local.


[1]  Prefeitos neste período: 1988/1991 - Anselmo Rodrigues (PDT); 1992/1995 - Irajá Andará Rodrigues (PMDB); e 1996/1999 - Anselmo Rodrigues (PDT) (LOECK, 2008). A implementação do PRORENDA Urbano, em 1996, não só fortaleceu a relação entre o Prefeito Anselmo Rodrigues e o PDT com essa comunidade, bem como transformou o político em “pai” do Dunas, tendo em vista que o loteamento teve sua origem na  primeira gestão de Anselmo (1988 – 1991) e recebeu novamente grandes investimentos na sua segunda gestão (1996 – 1999).
[2] Ainda que nem sempre tenha sido possível garantir essa prática como regra nas relações de poder estabelecidas, pela         própria característica do jogo de poder.